domingo, 29 de abril de 2012

Madame Bovary c'est moi

Sempre gostei de novela. Desde criança. Meu pai não gostava que eu assistisse, então eu via escondido. Corria para a casa da minha avó, que ignorava conscientemente a proibição, ou via no quarto, enquanto todos se distraíam com alguma outra coisa. Se alguém se aproximava, eu mudava de canal.

A minha maior vontade era virar um grande autor de novelas. Quando me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, não era essa a resposta que eu dava, mas era sempre nisso que eu pensava. Eu elaborava tramas mirabolantes, cheias de reviravoltas. Minhas histórias eram sempre muito trágicas e abordavam temas polêmicos. Eu fazia também a escalação do elenco, escolhia os diretores geral e de núcleo com quem eu trabalharia, e até selecionava as músicas que estariam  nas trilhas nacional e internacional de cada uma das minhas "obras". 

Eu perdia muito tempo sonhando com essas coisas. Eu perdia muito tempo sonhando. 

O primeiro livro que eu me lembro de ter escolhido numa livraria, o primeiro livro que eu pedi que os meus pais comprassem pra mim foi uma edição de A Bela Adormecida, cujas páginas eram, em sua maioria, ocupadas por ilustrações que enchiam os meus olhos. Todos os dias, antes de dormir, minha mãe tinha que reler o conto. Eu só pegava no sono depois que ela tivesse feito isso. Enquanto ela lia, eu ficava prestando atenção em cada palavra e observando as ilustrações. Acabei decorando a história, de modo que até hoje eu sou capaz de contá-la exatamente do jeito que a minha mãe lia pra mim.

Já bem cedo, quando eu nem sequer tinha sido alfabetizado, eu perdia o meu tempo sonhando. 

Eu sonhava com princesas, com carruagens, com bailes de gala. Sonhava com fadas e com bruxas, com reis e seus súditos, vivendo felizes em seus reinos. Com bosques, florestas, encantos e poções. Só mais tarde eu comecei a sonhar com as minhas heroínas sofridas, vítimas de estupro - sim! -ou sofrendo de alguma doença terminal. Só mais tarde eu comecei a sonhar com mães dedicadas, capazes de passar por cima da lei pelo bem de seus filhos. 

De qualquer maneira, eu perdia o meu tempo sonhando. Mesmo quando os meus sonhos foram ficando mais sombrios, ainda eram sonhos, afinal.

E assim eu cresci, sempre perdido em devaneios. Só que os meus sonhos me afastavam tanto da minha realidade que, quando eu dei por mim, houve uma espécie de curto circuito e eu nunca mais funcionei do mesmo jeito. Percebi que, ao sonhar, eu evitava encarar o que estava diante de mim o tempo inteiro. E que, por tanto sonhar, eu paguei um preço. Tive, e ainda tenho, pena de quem eu era. Por algum tempo, parei de sonhar, e foi como se eu tivesse morrido. Me arrastei pela vida, feito um zumbi. Não tinha nenhuma emoção, não me comovia com nada. Não tinha prazer em nada do que eu fazia. Só ia vivendo. 

Nunca deixei ninguém perceber que eu não estava bem. Mesmo porque, na companhia de outras pessoas, era como se eu deixasse de ser eu. Eu estava sempre sorrindo, sempre de bem com a vida. Tentava ajudar as pessoas ao meu redor, que era uma maneira de eu me ocupar e não ter que pensar em mim, na minha condição. 

Mas isso também mudou. Um outro curto circuito teve que acontecer. De repente, comecei a sonhar de novo. E cá estou. Continuo perdendo o meu tempo. Se não fosse assim, não seria eu. A diferença é que, agora, os meus sonhos deixaram de ser sonhos. São projetos. A minha fantasia virou realidade. Perdi a fé, mas não perdi a esperança. Deixei de acreditar cegamente, o que não quer dizer que eu não acredite em nada. Sim, eu acredito que é preciso acreditar. Mesmo que se acredite na descrença total.

Não exagero quando eu digo que eu sou a própria Emma Bovary. Ou era.